Vamos brincar de política?

Assim como no livro “A Eleição dos Bichos”, o Brasil se prepara para escolher seus próximos governantes em outubro. Criança não vota, mas tem tudo a ver com isso, descubra por que

A bicharada cansou dos mandos e desmandos do Leão, que desviou a água do rio para construir uma piscina na própria toca. Foi então que tiveram a ideia de fazer uma votação e escolher um novo governante para a floresta. Assim como no livro “Eleição dos Bichos”, o Brasil irá eleger novos representantes em outubro. 

Os candidatos não são a Macaca, a Preguiça, a Cobra e o próprio Leão, mas seres humanos adultos, que já estão em campanha, apresentando suas propostas para ter o voto das pessoas. Criança não pode votar nem concorrer.

🤔 Então, o que você tem a ver com isso?

👍 Absolutamente tudo, e nem é só porque as eleições acontecem no mês das crianças. Desde que nascem, meninas e meninos são cidadãos e têm o direito de participar, defende o escritor e ativista Pedro Markun. Pedro é um dos autores deste livro, que foi escrito e desenhado junto com crianças. 

Ainda que alguns adultos achem que o assunto não deve ser conversado com crianças, especialmente as pequenas, elas já perceberam que o país está se preparando para viver um dos momentos mais importantes do seu calendário, observa o escritor. Tem debates na TV, panelaços nas janelas, discussões nos almoços de família e muita troca de informação nas escolas.

Pedro Markun, escritor e ativista

Se a gente escolher não falar sobre política com as crianças, deixaremos que a única percepção que elas têm desse tema seja turva, porque não tem ninguém falando de política com elas, mas elas estão ouvindo e coletando um sussurro do mundo”, afirma Pedro, que é pai de Maria, de 10 anos, e de Thereza, de 8 anos. 

Quando convida as crianças a essa participação, Pedro chama para uma brincadeira. “Eu costumo dizer assim: vamos brincar de criar políticas, vamos brincar de inventar formas de a gente se organizar”.  “Eleição dos Bichos” teve a participação de 60 meninas e meninos, entre 2 e 13 anos de idade, estudantes de cinco escolas nas cidades de São Paulo e Florianópolis. 

Durante as oficinas, as crianças escutaram barulhos da selva na sala de aula. Ao final dos intervalos e cheias de energia, elas brincavam de “O mestre mandou imitar bicho”.  Ali, se transformaram em onças e lobos e depois, em criaturas mais lentas, como tartarugas e lesmas.   

🎉 Quando cada turma virou uma microcidade de animais, todos se organizaram para ver quem ia mandar na floresta.

O resultado está no livro: uma bonita defesa da democracia.  Para Pedro, é muito importante que a sociedade crie políticas públicas com as crianças. “Ao construir um país pensado por crianças, a gente tem uma sociedade melhor, bem mais real e verdadeira”. 

Agenda de direitos

Em 2022, tem adulto se unindo no Brasil para que as crianças participem da política. Desde junho deste ano, 18 organizações sociais começaram a convocar pré-candidatas e pré-candidatos à presidência da república para que eles considerem crianças e adolescentes como os mais importantes em suas campanhas. Quando as candidaturas foram lançadas, em agosto, as organizações passaram a encontrar aquelas e aqueles que estão concorrendo à presidência do país. 

Esse movimento é a Agenda 227, número do artigo da Constituição Federal que define a garantia de direitos de crianças e adolescentes como “prioridade absoluta”, ou seja, a mais importante de todas.

Os representantes da Agenda 227 entregaram aos candidatos o Plano País pela Infância e a Adolescência, um documento com propostas de políticas públicas elaboradas por 150 organizações da sociedade. 

+ Clique aqui para ler o Plano País pela Infância e a Adolescência.

O Plano traz sugestões para áreas que estão no Estatuto da Criança e do Adolescente, como saúde e educação, além de propostas para a diversidade, o que inclui a igualdade racial e o cuidado com infâncias indígenas, ribeirinhas, com deficiência e muitas outras, explica Marcus Fuchs. Este educador e jornalista faz parte da equipe responsável pelo tema “eleições” na Agência de Notícias dos Direitos da Infância. A Andi é uma das 18 instituições da Agenda 227. 

A ideia é que a futura presidenta ou o futuro presidente se comprometa com este Plano, incluindo o seu conteúdo em suas propostas de campanha. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU também estão no Plano País pela Infância e Adolescência, que sugere cuidar de crianças erradicando a fome e a pobreza e garantindo o acesso à justiça, explica Marcus. O integrante da Andi conta que as organizações decidiram se juntar para enfrentar as desigualdades no país, que se tornaram ainda maiores com a pandemia de covid-19. 

Marcus Fuchs, jornalista e educador

As crianças e os adolescentes foram as principais vítimas pela perda de acesso à escola, pelo aumento da violência contra elas, pela diminuição da imunização para outras doenças, pelas fake news antivacina, etc”, diz o educador.

💡 Fake news é uma expressão em inglês muito associada à política. São notícias falsas, conteúdos que não são o que parecem e isso causa confusão e problema. 

Para Marcus, priorizar meninas e meninos significa uma oportunidade de o Brasil “voltar aos trilhos”. Você é prioridade em casa, na escola e na sua cidade? O representante da Andi deixa uma explicação que pode ajudar nas conversas sobre política. Se nas famílias ou nas escolas as novas gerações não têm voz, todos perdem, inclusive os adultos. “Onde há mais participação, há mais vida comunitária, menos violências e mais aprendizagens”.

Uma naçãozinha

Quanto mais as crianças participam das decisões no dia a dia das cidades, mais esses lugares vão ganhando pequenos núcleos de cidadania, ensina o sociólogo Paulo Silvino. Um sociólogo é quem estuda como as sociedades se organizam e funcionam. Paulo também é professor na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.  

“São nesses pequenos núcleos que a gente aprende o que é democracia”, diz o professor, que trabalha com política pública e primeira infância. Ele defende que escutar as crianças e convidá-las a pensar em projetos para as cidades é muito importante para que cada menina ou menino entenda o que é o coletivo e se interesse pelo assunto. 

Porque é isso o que as sociedades são: pessoas diferentes vivendo juntas.

Paulo Silvino, sociólogo

E a gente está em um período individualista, em que as crianças são incentivadas a pensar apenas em si e a competir com os colegas, são levadas a achar que devem ser as melhores, ter as melhores notas, e isso é muito ruim, gera crianças egoístas e pouco interessadas pelo que é comum a todos”, critica o estudioso.

Esse problema não foi criado pelas crianças, diz o sociólogo, mas pelas famílias, pelas escolas e pelos governos. Paulo Silvino defende que é preciso recuperar o entendimento de que a escola é essencial para as crianças. É um direito. Ele critica o projeto de lei (3262/19), que quer autorizar o homeschooling no Brasil. Essa palavra, também em inglês, significa “estudar em casa”. 

Mas não é fazer os deveres em casa e depois ir para a escola. É não ir mais para a escola e, em vez de ter professores, ser educado pelo pai, pela mãe ou por outro adulto responsável. Paulo vê muitos problemas nesse projeto: em casa, as crianças não têm colegas e não podem vivenciar um coletivo diferente da família. 

As crianças mais pobres ou aquelas que são vítimas de violência doméstica também perdem a proteção da escola. Tem crianças que contam com a merenda para se alimentar, sabia? E outras que precisam da ajuda da professora ou diretora para denunciar pais e mães que cometem abusos. 😕

Em maio de 2022, os deputados aprovaram essa proposta, que agora está sendo analisada pelos senadores. Deputados e senadores são os políticos que fazem as leis no país. Por enquanto, o homeschooling é proibido no Brasil. 

Quem defende esse tipo de ensino não conhece política pública e tampouco a necessidade das crianças. Precisamos que as escolas voltem a formar pessoas, cidadãos para o mundo, e não números”, diz o especialista.

Para ele, as escolas são espaços onde as crianças podem conversar sobre todos os temas, como política, educação sexual e morte. “Quando as escolas têm uma gestão democrática, isso acaba incentivando que as crianças sejam atores políticos”. 

Esse ator aí de que Paulo fala não é ator de novela ou de cinema, mas uma palavra que quer dizer um ser político, de ação política. E, embora crianças sejam seres em construção, isso não tira delas o protagonismo. Sabe o que é um protagonista? O personagem principal de uma história. 

Quanto mais as crianças participam, mais elas se tornam personagens principais de suas histórias e pensam sobre como é importante conviver com outras crianças, ensina Paulo. Nesse ambiente de cidadania, ele resume, “a sala de aula vira uma naçãozinha”. 

Dentro e fora da escola 

E, por falar em naçãozinha, você viu as propostas das crianças do Rio das Rãs para o Brasil? Se não viu, clique aqui e depois volte.

Pronto, agora que você já conhece o quilombo, sabe que a política está no dia a dia das crianças e também na escola. A educação quilombola é pensada a partir do território, ensina o professor Tiago Rodrigues, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). É esse território, com os saberes, os fazeres e os modos de ser da comunidade, que dá sentido à educação das crianças, explica o professor. “Em um quilombo, fazer política ou ser política é defender morar naquele lugar”.

Tiago Rodrigues, professor

Onde adultos e crianças precisam lutar pelo direito à terra, muitas vezes a escola é o único prédio público. Por isso, além das aulas, é nas escolas que acontecem as reuniões, as festas, as exposições e tantos outros eventos importantes. As crianças olham para a escola e pensam como tudo ali deveria ser – a hora do recreio, as atividades, os professores – e sabe por que? “Porque elas se vêem como parte de um coletivo”, explica Tiago, que é assessor voluntário do Conselho Estadual das Comunidades e Associações Quilombolas do Estado da Bahia (CEAQ).

O CEAQ faz parte da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ). Este movimento social nasceu para mobilizar territórios em vários estados do Brasil. Uma curiosidade: a CONAQ foi criada em 1996, na cidade baiana de Bom Jesus da Lapa, da qual Rio das Rãs faz parte. 

✊🏿 Um ano antes, em 1995, aconteceu a Marcha para Zumbi, quando 30 mil pessoas – homens, mulheres e crianças – caminharam pelas ruas de Brasília nos 300 anos da morte do último líder do Quilombo dos Palmares. Fundado no século 16 onde hoje é o estado de Alagoas, esse quilombo foi o maior das Américas, com cerca de 20 mil habitantes e 11 povoados. Por mais de 100 anos, viveram em Palmares pessoas negras que resistiam à escravidão e também pessoas indígenas e brancas que eram contra essa brutalidade. Zumbi foi morto no dia 20 de novembro de 1695, data que hoje é celebrada como o Dia da Consciência Negra.

Ao pensar políticas públicas para crianças quilombolas (e junto com elas), os governantes devem estar atentos ao olhar dessas meninas e meninos, defende Tiago. “É um olhar simples, singelo, mas que diz muito sobre o lugar”.  Desde cedo, as crianças em um quilombo aprendem sobre a natureza, a história e a resistência, especialmente em lugares onde os conflitos ainda estão acontecendo. Já imaginou como deve ser difícil ver seu pai ser ameaçado ou ter a sua casa derrubada?

🏠 Para as crianças, não deveria existir separação entre o território e a escola ou entre qualquer espaço comunitário e o espaço da escola, diz o professor.

Em vez disso, a criança entende que tudo deveria ser um contínuo entre espaços fora da escola e dentro da escola, porque na verdade ela vive em um só território. Uma política que se preze deve levar em conta esse olhar sensível”.