Entrevista: “Temos que aprender a escutar as crianças, especialmente, as pequenas”

Uma cidade pensada por crianças é mais bonita, diversa e divertida, diz a educadora Maria Thereza Marcílio, da ONG Avante; para a especialista em infâncias, a participação política de crianças melhora o mundo

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Para que as crianças participem de políticas públicas voltadas para elas, os adultos precisam aprender de novo o que sabiam quando eram crianças também. Quem ensina isso é a educadora Maria Thereza Marcílio, presidente e fundadora da Avante – Educação e Mobilização Social, uma organização da Bahia.

🧸 E o que os adultos sabiam? Brincar, desenhar, ver o mundo com surpresa, perguntar… coisas que parecem simples, mas que se perdem com o tempo, quando as pessoas vão adultecendo.

Um jeito de mudar isso é lembrar que todo adulto tem uma menina ou um menino dentro dele. Assim, fica mais fácil escutar as crianças como pequenas cidadãs, que podem (e devem!) participar das cidades onde vivem, transformando esses lugares com mais brinquedos, livros, árvores, escolas, calçadas e menos carro, lixo e consumo. Esse é o trabalho que Thereza vem fazendo há 26 anos com a Avante em diversas comunidades na Bahia e em outros estados do Brasil. Nesta entrevista, ela conta como uma cidade boa para as crianças é boa para todos. 

Por que alguns adultos acreditam que certos assuntos, como a política, não devem ser conversados com crianças pequenas

Maria Thereza Marcílio, fundadora da Avante

De um modo geral, as sociedades, e não só a brasileira, vêem a criança pequena como um ser menor. As crianças funcionam de forma diferente dos adultos, são seres em desenvolvimento. Por um lado, elas têm habilidades e competências que nós, adultos, não temos mais, seja pela educação que recebemos, porque crescemos ou ainda pelo jeito que escolhemos conviver.

Por outro lado, as crianças ainda estão construindo saberes típicos dos adultos, como falar, argumentar e pensar de forma abstrata. O adulto que não está aberto a essa potência que é a criança, dificilmente entende isso, que ela é um ser curioso, que constrói hipóteses e reflexões e que é capaz de se pronunciar sobre os temas de uma forma diferente da nossa, nem sempre verbal. 

Os estudiosos, as pessoas sensíveis, os artistas, os brincantes e aqueles que conservam dentro de si a sua própria criança, esses sabem conversar com elas e, mais do que isso, sabem escutá-las. Precisamos estar mais abertos para entender a criança pequena. As instituições, principalmente as escolas e tudo o que envolve a cultura, devem estar mais atentos para ajudar a população a entender a criança e a recuperar a criança que todos temos em nós.

De que maneira as crianças podem participar da construção de políticas para elas

Temos que mudar a nossa ideia sobre a criança. Podemos usar tudo o que sabemos sobre o ser humano, sobre a natureza e transformar a infância em uma matéria cotidiana. Então, para que isso faça parte do nosso dia a dia e para que se garanta políticas públicas planejadas junto com elas, temos que aprender a escutá-las. Escutar é a primeira coisa.

A família tem que aprender a escutar, assim como a escola e as instituições de cultura. Se a gente escuta, vai perceber o quanto as crianças têm a dizer. E não se trata de ouvir, mas de escutar, é diferente. Ao escutar, você tem que prestar atenção nelas e fazer isso de forma sensível. 

Como é essa forma

Temos que captar o que não é dito do jeito como nós, adultos, nos habituamos a falar. Temos que prestar atenção na expressão corporal das crianças, no olhar e nas palavras que nem sempre estão sendo ditas ou são as mesmas que nós usamos. Precisamos trazer a voz das crianças. Somente assim, a gente vai poder garantir essas políticas, incentivar a participação delas e considerar não só que isso é natural, mas que é fundamental. Meninas e meninos têm o direito de ser escutados, está na Convenção Internacional dos Direitos da Criança, que o Brasil assinou. 

A criança é um sujeito e tem direito a essas três palavras com a letra P: provisão, participação e proteção. Ter acesso à educação, saúde, cultura e ao brincar é um direito; participar é um direito; abrir espaços de escuta nas escolas e nas famílias também.🪁

Quantas vezes a gente faz coisas sem consultar as crianças, até o jeito de segurar, de carregar, de orientar é um jeito que não considera o lugar delas. Carregamos de qualquer jeito, trocamos a roupa sem conversar com elas, fazemos as rotinas sem consultá-las, colocamos a comida do jeito que a gente acha que tem que ser e sem levar em conta o que a criança quer e gosta. Ou seja, falta atenção, falta escuta e falta garantir esse direito. 

Cuidar dessas faltas aproximaria as crianças de políticas para elas❓

Com certeza! Imagine, você vai planejar uma praça em uma cidade. Não seria interessante escutar as crianças sobre o que elas querem nessa praça? Você vai fazer uma reforma na escola. Não seria bom ouvir as crianças sobre o que elas querem na escola?

Você vai introduzir uma rotina na sua programação pedagógica. Não seria bom ouvir as crianças sobre essa rotina? Você vai definir os horários de funcionamentos de atividades delas na família. Não seria bom escutar essa criança? Como pensar o trânsito da cidade sem escutar as crianças? Se a gente pensasse e ouvisse as crianças, as cidades seriam mais amigáveis, mais bonitas. 

Nós temos várias experiências de escuta de crianças e, nas cidades, elas vêem várias coisas que a gente não vê, justamente porque elas são pequenas. 🐣

Então, elas veem mais o lixo do que a gente vê, veem mais coisas danificadas do que a gente vê, veem o abandono, seja de pessoas ou de objetos. Às vezes, a gente passa por pessoas dormindo na rua e a gente nem olha, mas as crianças sim, elas têm uma sensibilidade maior. E, olha, a gente já teve essa escuta um dia porque a gente já foi criança. Elas pedem mais flores, mais árvores, menos carros, mais segurança, mais brinquedo, e não é de comprar, querem mais lugares para brincar, elas têm uma atenção enorme para o trânsito, que é muito violento para elas, alturas. Teríamos outras cidades se escutássemos as crianças. 

O Brasil realiza, em 2022, eleições consideradas as mais importantes da história. Como as crianças pequenas podem participar deste momento

Em qualquer situação, é fundamental que as crianças sejam protagonistas de suas histórias, o que quer dizer, que elas vivam suas experiências, sejam responsáveis por seus aprendizados e tenham cada vez mais autonomia. No momento que estamos vivendo no país, isso é mais importante ainda. Sobre a política, devemos discutir as grandes questões com as crianças, mas não entrar em conversas como “Vou votar em Fulano ou vou votar em Sicrano”, porque aí você também pode estar fazendo um direcionamento. 

💬 A gente pode (e deve!) discutir sobre a sociedade, sobre a desigualdade, sobre os programas que existem, ou discutir sobre os temas que saem na televisão, como armar a população. 

Podemos conversar com a criança sobre porque isso é ruim, porque a gente não pode admitir esse elogio à violência, trazer essas questões para a mesa, para a sala de visitas, sentar com as crianças e conversar,  isso é discutir política. As crianças têm uma sensibilidade para assuntos como moradia, querem saber por que tem pessoas que moram em barraco, por exemplo. Não é discutir panfletariamente ou preconceituosamente.

Acho que a maior dificuldade é nós, adultos, nos defrontarmos com os nossos preconceitos, com os nossos vieses, com as nossas opções políticas e ideológicas. A conversa com a criança tem que ser muito honesta, muito limpa, e não precisa você doutrinar, você precisa responder. 

Não adianta dizer “Agora nós vamos fazer uma sessão de discussão política, senta todo mundo para conversar”, mas no cotidiano, as crianças perguntam, eu já ouvi tanto: “Por que esse homem está dormindo aqui na rua?”,  “Por que esse menino do meu tamanho está pedindo dinheiro aqui no sinal?”,  “Por que Fulano mora em uma casa assim?,  “Por que quando chove, cai casa no morro?”, “Por que eu não posso sair na rua para brincar?”. 

Enfim, as crianças têm mil perguntas, se a gente deixa que elas perguntem, se a gente escuta as perguntas e conversa com elas honesta e claramente, a gente vai conseguir que elas tenham uma participação efetiva e elas podem até nos ajudar para que sejamos melhores. 

Como falar sobre coisas tão difíceis desse jeito honesto que a senhora sugere❓

Bem, primeiro, é importante saber o que não fazer.  Não é doutrinar, não é sentar e dar uma aula, é muito mais uma abertura para dialogar, para conversar, para escutar. É saber que, às vezes, a pergunta que uma criança faz pode levar a uma conversa longa, às vezes, a pergunta só requer uma resposta rápida e pronto. Às vezes, a criança quer uma coisa muito mais simples e a gente complica por conta dos nossos preconceitos e dificuldades de tratar de certos assuntos. 

Mas, se a gente estiver aberto e escutar na simplicidade e também na complexidade das perguntas das crianças, a gente consegue conversar sobre política e sobre qualquer assunto, sem ir mais do que o que ela quer e sem deixar de escutá-la. 

Eu insisto que a grande questão é saber escutar, é saber se colocar no plano da criança, ficar na altura dela e saber o que ela tem para dizer e, com a sensibilidade e a atenção necessárias a essa escuta, você começar a elaborar o que está sendo dito. Algumas questões podem ir muito além, outras vão ficar no mais simples, mas no que satisfaz a criança. 

De que maneira podemos incentivar toda essa experiência para as crianças, considerando que ainda vivemos a pandemia de Covid-19

A pandemia agora está em outro momento e temos que conversar sobre ela, mostrar a importância do cuidado coletivo, pois a pandemia não é uma doença individual, é problema de saúde pública e atinge a todos nós, portanto, temos que ter cuidados conosco e com o outro.

Esses conteúdos todos devem fazer parte do cotidiano das crianças, para que elas não sejam alvo de informações equivocadas, das famosas fake news, da desinformação científica. Podemos traduzir tudo isso de forma honesta e que esteja ao alcance delas.

Na minha experiência, criança usar máscara é a coisa mais fácil do mundo, quando elas entendem, não é um objeto dramático, nós é que temos a rejeição, não elas. Eu já vi criança explicando porque precisa usar máscara.