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Resumo: Crianças da Escolinha Maria Felipa, em Salvador, sugerem ideias para a nova presidência do Brasil com a experiência de já terem pensado projetos de lei para a capital da Bahia, estudando o trabalho das vereadoras e vereadores. Sugestão: Leia um capítulo por dia.
Se a próxima presidenta ou o próximo presidente do Brasil escutar Ana Flor Souza, de 6 anos, o país terá muito mais crianças brincando. O conselho de Flora da França e de Arthur Gonçalves, também de 6 anos, será básico na hora de montar o Ministério da Educação: que nenhuma menina ou menino fique fora das escolas. Ao ouvir Maria Luna Specht, de 7 anos, a nova presidência vai garantir casa, roupa e segurança para as crianças brasileiras, especialmente as pequenas.
Essas propostas são resultado da mesma pergunta: se você pudesse conversar com quem vai governar o país, que ideias levaria? Estamos no Império de Mali, como é chamado o 1º ano do ensino fundamental da Escolinha Maria Felipa. Essa é a primeira escola afro-brasileira do país e fica em Salvador. A Maria Felipa promove uma educação afrocêntrica, ou seja, coloca a África no centro das aprendizagens, apresentando para as crianças os povos que fundaram a humanidade e também os povos originários do Brasil.
🙅🏾♀️ Quem foi Maria Felipa? Nascida em 1799, em Itaparica, ilha da Baía de Todos os Santos, essa mulher negra, marisqueira e pescadora é uma das heroínas da guerra de independência do Brasil e da Bahia. Na camiseta da escolinha que leva seu nome, uma frase resume essa personagem: quem tem Maria Felipa não precisa de Mulher Maravilha.
No 1º ano, um mapa africano foi pintado pela turma, que escreveu ali o nome do seu império. “Um império é um governo que tem um imperador, ele é o chefe”, explica Stela Menegaz, de 6 anos. Nas paredes da sala, textos das crianças ensinam sobre aquele lugar. Ceci Esteves, de 6 anos, conta que Mali foi fundado por Sundiata Keita. “Ele era o maior entre os reis e nasceu com uma deficiência”. Leonardo de Jesus, de 6 anos, diz que o homem mais rico do mundo veio de África. “Foi o imperador Mansa Musa, e eu me vesti dele para mostrar o império para as famílias”.
🔎 Uma curiosidade: o império de Mali foi formado no século 11. Um século são 100 anos. Isso quer dizer que as crianças hoje estão aprendendo sobre uma forma de governo que existiu mil e cem anos atrás!
Conhecer a história que os livros não contaram – e muitos ainda não contam – ajudou essas crianças a pensarem nas propostas para o novo governo do Brasil. “Em nosso império, existem leis que protegem as mulheres, a natureza e os estrangeiros”, diz outro texto, logo abaixo do mapa, mostrando que a política é parte de tudo na escola . Quer outra lição valiosa dessa turma e que as crianças e os adultos de todos lugares do planeta deveriam saber? “A África não é um país”.
🛣️ Outra curiosidade: em cima do mapa da África, na sala do Império de Mali, tem uma placa de estrada onde se lê: “Bacurau 17 km. Se for, vá na paz”. Bacurau é uma cidade inventada que não fica no continente africano, mas que tem tudo a ver com a sua história de resistência. Neste filme brasileiro do diretor Kleber Mendonça, uma pequena cidade do sertão nordestino some do mapa e seus moradores vivem o mistério que começa com a chegada de forasteiros. Não é um filme para crianças, mas anote para ver a partir dos 16 anos.
As leis das crianças
Antes de pensar ideias para melhorar o Brasil, o 1º ano teve uma experiência parecida em março deste ano, quando criou projetos de lei para a cidade de Salvador. Tainá Cardoso, de 6 anos, é autora da Lei do Desmatamento, “para que as pessoas não cortem as árvores e não poluam os rios”. Luna Isadora Cardim, de 6 anos, fez a Lei da Criança, “para que nenhuma criança precise trabalhar”. Já Ana Liz Saldanha, de 6 anos, criou a Lei da Moradia, “para que todas as pessoas pobres tenham casa”.
Os vereadores fazem parte do Poder Legislativo e são responsáveis por sugerir, discutir e votar as leis das cidades sobre educação, transporte, saneamento e outros temas. São escolhidos pelo povo a cada quatro anos, nas eleições municipais. Em 2022, o Brasil faz eleições gerais, para escolher outros políticos: presidente da República, governador, senador, deputado federal e deputado estadual. 👩🏽💼👨🏻💼
Arthur foi o responsável pela Lei da Fartura, “para que todo mundo tenha o que comer”, e Leonardo criou a Lei do Direito das Pessoas Negras, “para que sejam respeitadas em todos os espaços”. Ceci propôs a Lei das Mulheres, “elas podem vestir o que quiserem”, enquanto Maria Luna inventou a Lei do Amor, “onde não há espaço para o desamor”. A proposta de Stela parece completar todas as outras: ela fez a Lei da Paz, “para um mundo sem guerra”.
Ao criar leis, as crianças conheceram o trabalho dos vereadores e, em 14 de março, celebraram o dia “Marielle Vive”, saudando a memória e a produção política e intelectual dessa socióloga que foi vereadora do Rio de Janeiro. Em 2018, um crime tirou a vida de Marielle Franco, mas não foi esse o foco do trabalho das crianças. A diretora Cristiane Coelho conta: “Ela foi a quinta mais votada na primeira e única eleição que concorreu, em 2016. A turma teve uma vivência política para entender o que os vereadores podem fazer pelas cidades”.
Você sabe o que é feminagem?
No Rio de Janeiro, a prefeitura inaugurou uma rua com o nome de Marielle, para que as pessoas vissem que o pensamento dessa vereadora continua presente. No pátio da Maria Felipa, tem uma cópia dessa placa e toda a escola se organizou em uma “feminagem”, que é um gesto de agradecimento a uma mulher. Cristiane explica:
Falamos assim em vez de dizer homenagem, porque nos referimos a uma figura feminina. Essa é uma lição do feminismo negro”.
👧🏻👱🏼♀️👩🏾🦱👩🏽🤰🏻👵🏼 O feminismo é um movimento político que defende direitos iguais para mulheres e homens. A sociedade brasileira está estruturada como um patriarcado, ou seja, os homens ainda ocupam a maioria dos espaços de poder. Assim como as infâncias são muitas porque as crianças são diferentes, os feminismos também são. A filósofa Djamila Ribeiro ensina que o feminismo negro luta pelos direitos das mulheres negras, que são a maioria da população do país e que, historicamente, vivenciaram e vivenciam muitas formas de opressão.
“A turma pensou em criar leis depois de saber que essa vereadora defendia os pobres, as crianças, as mulheres e a população LGBTQIA+”, diz a professora regente Raquel Xavier. Essas letras vem das palavras Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgênero, e significam que as pessoas têm o direito de amar como desejarem. Sabe quem também defendia isso? Acertou quem respondeu Maria Felipa.
O 1º ano estudou ainda a Lei Espaço Coruja, de autoria de Marielle e do vereador Tarcísio Motta. Essa lei determina que crianças pequenas tenham um lugar seguro para ficar à noite, enquanto as suas famílias estiverem trabalhando ou estudando. Leonardo conta que conheceu uma criança chamada Marielle e que o conselho que ele daria para a presidência do Brasil é garantir moradia digna. “Toda criança precisa de uma casa. Eu fico triste pensando nisso, porque nem toda criança tem”.
Pró Raquel ensina à turma que aproveite esse sentimento diante das desigualdades para transformá-las. Ela sugeriu que cada um criasse o seu projeto de lei pensando no que os deixava indignados, que é quando a gente fica muito chateado com situações injustas. Ana Flor já se sentiu assim:
O que me deixa indignada e triste é quando os pais gritam com as crianças. A minha lei é para que nenhum adulto nunca mais faça isso”.
A mãe de Leonardo, a bióloga e cientista Deboraci Prates, conta que, um tempo atrás, quando as aulas ainda aconteciam só pelo computador por causa da pandemia, Leonardo estava desenhando Marielle Franco. Ao ver as fotos que a professora mostrou, da vereadora em passeatas, o menino quis entender: “Mamãe, por que as mulheres estão protestando sozinhas? Por que os homens não estão com elas, ajudando elas no protesto?”.
Eleição de bicho, eleição de gente
Quando a reportagem deste especial esteve no Império de Mali, lemos Eleição dos Bichos e as crianças ficaram pensando como seria se o livro trouxesse outros candidatos. Elas imaginaram as campanhas da chita, da raposa, do coelho, da girafa, do panda e da borboleta. Sobre a eleição dos humanos, as ideias foram ainda mais longe. Maria Luna, que já foi votar com a mãe e o tio, acha que as crianças também deveriam ter o direito de escolher seus representantes.
“Eu sei que vai ter bastante tempo para eu crescer, porque ainda estou com sete anos, e eles não vão deixar eu votar, só porque sou criança. Mas, quando puder, já decidi: vou votar e também quero ser a presidenta”, planeja a menina. Seu projeto para o Brasil inclui um orfanato maior do que muitas escolas, para acolher as crianças que perderam a mãe ou o pai. “Durante a pandemia, isso aconteceu bastante”, ela ensina.
Na Escolinha Maria Felipa, a educação é um ato político, define a professora Raquel Xavier. O papel de uma educadora, ela explica, não é entregar nada pronto, mas ajudar as crianças a construírem, do jeito delas. “No nosso cotidiano, a gente está sempre questionando, devolvendo perguntas, mostrando situações diversas para que as próprias crianças comecem a desenvolver esse olhar crítico, que já é muito forte nelas”.
Depois de dois anos longe da escola por causa do coronavírus, o 1º ano aprendeu sobre empatia. Tainá explica:
É quando você se coloca no lugar do outro e pensa assim: se fosse comigo, como eu iria me sentir?”. Stela comenta: “Eu aprendi a brincar com todos os meus amigos e a não deixar de brincar com ninguém”.
Nessas descobertas, Flora conta outra lição importante, sobre identidade: “A gente é o que a gente acha, o outro não nos define. Eu tenho o cabelo preto, sou um pouquinho marrom, tenho o olho preto e estou animada”.
Esses dias, ao ver algumas toalhas com estampas de candidatos penduradas nas janelas da vizinhança, as crianças quiseram saber quem ia vencer as eleições para presidente. Antes de responder, pró Raquel fez outra pergunta: vocês sabem quais são as candidaturas e os projetos? O 1º ano então pesquisou sobre eleições, participação política e tudo o que envolve números em um resultado eleitoral. Ao conhecer as propostas das candidatas e dos candidatos, saíram pela escola fazendo um levantamento para saber o voto de cada adulto.
Com essa pesquisa eleitoral, as crianças aprenderam história, matemática e voltaram a falar sobre o que esperam para o Brasil. Nos cartazes que escreveram com a professora, cada uma pôde expressar novas ideias. Stela defendeu o fim da pobreza. “Eu espero que as coisas fiquem mais baratas”. Maria Luna acha que o resultado das eleições pode acabar com a violência. “Eu queria tirar as armas das pessoas”.
(Re) ver a cidade
O papel de uma escola é mostrar que a política não é o bicho-papão que muitos adultos falam, mas algo que faz parte da nossa vida o tempo inteiro, defende a educadora e diretora Cristiane Coelho. Na Maria Felipa, onde meninas e meninos de diferentes classes sociais convivem, essa consciência está nas situações mais simples. Quando chove, por exemplo, as crianças sabem que não é igual para todo mundo: a depender de onde morem ou como se locomovam pela cidade, elas terão que enfrentar mais ou menos desafios.
“Embora cada criança viva uma realidade, elas sabem que a chuva tem que ser uma pauta de todos”, diz Cristiane. Se uma escola não quer que as crianças tenham experiências políticas, não é porque esse tema é de adulto, mas porque, ao aprender sobre política, as crianças podem questionar tudo, inclusive a escola, acredita a educadora. “Não podemos esquecer que, no Brasil, certos assuntos e certos grupos são invisibilizados. Escola tem que fazer pensar. Escola tem partido, sim, para se posicionar contra o silenciamento”, ela afirma.
Na Maria Felipa, as crianças têm dois professores regentes por turma. Um dá aulas em português e o outro, em inglês. Também faz parte das aprendizagens o estudo de LIBRAS, a Língua Brasileira de Sinais, para que aprendam a se comunicar com crianças e adultos surdos.
A relação das crianças com a cidade também é construída para que elas possam vivenciar o que tantos moradores de Salvador não conhecem. No aniversário da capital baiana, em março, a turma visitou a Lagoa do Abaeté, no bairro de Itapuã, e conversou sobre o projeto de lei da Câmara dos Vereadores que propõe mudar o nome do lugar para “Monte Santo Deus Proverá”. Já em Cajazeiras 10, estiveram no Parque Pedra de Xangô, onde a rocha bem grande com o nome desse orixá é um símbolo sagrado afro-brasileiro. A área é remanescente de quilombo e de aldeamento indígena.
Em abril, quando algumas escolas no Brasil ainda comemoram o Dia do Índio fantasiando as crianças, o Império de Mali teve uma aula de campo no Encontro Indígena da Bahia, que reuniu 26 etnias e mais de mil representantes dos povos originários. O acampamento foi montado em frente à Assembleia Legislativa (Alba), onde trabalham os deputados estaduais. Esses parlamentares são responsáveis por apresentar projetos de lei e fiscalizar as finanças do estado.
As crianças do 1º ano caminharam pelo acampamento, admiraram os artesanatos e as pinturas e acompanharam a plenária de mulheres indígenas. Uma plenária é uma reunião com um grande número de participantes. No acampamento, muitos assuntos foram conversados, como a saúde e a educação dessas comunidades, além da luta contra o Marco Temporal.
Pelo marco temporal, os povos indígenas só teriam reconhecidas as terras ocupadas depois de 5 de outubro de 1988, data em que nasceu a nossa Constituição Federal. Essa tese, portanto, não considera os indígenas como os verdadeiros donos da terra por serem os povos originários do Brasil. O marco temporal começou a ser votado pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e essa votação foi suspensa. O STF é a mais alta corte de justiça do Brasil, responsável por cuidar da Constituição.
Para expressar o que sentiu nessa aula fora da escola, Ana Flor segurou um cartaz pedindo a demarcação da terra indígena. Em outras palavras: que seja marcado e reconhecido no chão o que é um direito. Arthur lembra: “Nesse dia, a gente também falou que o Brasil não foi descoberto porque, quando os portugueses chegaram, já tinha pessoas morando aqui”.
Decolônia de férias
Tudo isso o que as crianças vivem e aprendem faz parte de um calendário decolonial. Essa é uma palavra poderosa para a gente pensar que outros mundos são possíveis, diferentes das histórias oficiais que são contadas há séculos por adultos em diversos lugares, ensina Cristiane. A educação decolonial avança no sentido contrário ao sistema em que povos dominavam outros com violência, impondo sua língua e cultura.
O Brasil tem duas leis que determinam o ensino da história e cultura afro-brasileira (Lei 10.639/03) e indígena (11.645/08) na formação da nossa sociedade. São quase 20 anos da primeira lei mas, na prática, poucas escolas do país incluíram esses conteúdos e vivências no dia a dia das crianças. E atenção: falar sobre esses temas apenas em algumas datas é diferente de ter um projeto escolar pensado a partir da ancestralidade brasileira.
Foi para que a filha Iana, uma criança negra que hoje tem 4 anos, pudesse estudar o mudo com esse olhar, que a professora Bárbara Carine Soares, do Instituto de Química da Universidade Federal da Bahia, criou a Escolinha Maria Felipa. Essa mãe, que é cientista, propõe um currículo escolar em que a África é produtora de cultura, ciência e tecnologia. Na prática, as crianças aprendem a pesquisar o corpo humano a partir dos processos de mumificação, por exemplo. Ou, em vez de brincar em uma colônia, vivem a decolônia de férias.
As referências estão por toda a escola. No parquinho, a parede atrás do gira-gira traz as fotos de intelectuais negros, indígenas e brancos que as crianças da Maria Felipa conhecem e que você também precisa conhecer. Um intelectual é um pensador. A professora Bárbara Carine se define como uma intelectual diferentona.
💡 Anote esses nomes para pesquisar: Lélia Gonzalez, Paulo Freire, Mestre King, Luiza Bairros, Cacique Raoni, Carolina de Jesus, Milton Santos, Neguinho do Samba, Mário Gusmão, Cora Coralina e Abdias do Nascimento.
secretária da Maria Felipa
Essa galeria nos leva para a linha do tempo que fica na recepção da escola, com o legado científico e tecnológico do continente africano. Um legado é uma herança. Você sabia que foi na África que surgiu a agricultura, considerada a primeira grande revolução tecnológica da humanidade? Há pelo menos 18 mil anos, as pessoas entenderam que podiam plantar e colher em vez apenas de caçar ou apanhar frutas silvestres.
Essa informação também é política e está nessa linha do tempo, elaborada pela presidente do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), Elisa Larkin, que deu esse presente para a Maria Felipa. Por 38 anos, Elisa foi companheira de Abdias do Nascimento e essa parte da pesquisa nós vamos adiantar para você: esse ativista político, artista e ex-senador da República já foi descrito como o mais completo intelectual e homem de cultura do mundo africano do século 20.
Maria Felipa Avante
Enquanto as escolas coloniais partem do ano de 1500 para contar a história do Brasil, a escola decolonial parte da grandeza intelectual dos nossos ancestrais”,
explica a museóloga Lorena Lacerda, secretária da Maria Felipa. Um museólogo pesquisa a relação dos homens, mulheres e crianças com objetos importantes para a história, a arte, a cultura e as ciências. É Lorena quem nos apresenta a escola.
Na parede perto do Império de Mali, ela mostra os adinkras, símbolos de um sistema africano de escrita. Você sabia que a escrita nasceu em África, há seis mil anos? Um desses adinkras é o sankofa, pássaro com a cabeça voltada para trás que, segundo o professor Abdias do Nascimento, traz esse conhecimento: é preciso olhar o passado para dar outro sentido ao presente e então construir o futuro.
É o que as crianças fazem quando estudam ancestralidade, identidade e comunidade, explica a diretora Cristiane Coelho, falando sobre os temas de cada unidade escolar. Para aprender a ler o mundo hoje e participar dele politicamente, meninas e meninos da Maria Felipa viajam no tempo e encontram seus ancestrais. Além do Império de Mali, ali estudam o Império Inca (G2), o Reino de Daomé (G3), o Império Maia (G4), o Império Ashanti (G5) e os Povos Tupinambás (2º ano).
A Maria Felipa, que foi inaugurada em 2019, apenas um ano antes do começo da pandemia, aprendeu a existir e a resistir pelo computador, e assim acabou se tornando uma escola brasileira também por outra razão: tem criança dessa escola em Sergipe, no Rio Grande do Sul e em São Paulo. Atualmente, a escolinha está fazendo as malas e vai para uma nova sede, para as crianças terem mais espaço para brincar e estudar. A mudança está acontecendo em parceria com as famílias e a comunidade, e todos estão convidados a colaborar.
Neste sábado (24/9) acontece o Maria Felipa Avante, festival com oficinas de gastronomia, música e apresentações artísticas. Vai ser no Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM) e quem participar, além de se divertir, vai contribuir com a nova sede da escola. Está em Salvador? Chame sua mãe, sua avó, seu pai, seus amigos e vá brincar! 🎶🎨🪁
A escola é um quilombo
Não se faz escola sem família, defende a diretora Cristiane Coelho. “A gente fala muito sobre quilombo, sobre aquilombar-se, e isso é mais do que ter um espaço para resistir. É sobre troca e coletividade”. A mãe de Stela, a bailarina e advogada Luiza Merieles, lembra que, em 2021, na formatura da educação infantil, a turma visitou a comunidade de Rio dos Macacos e a menina voltou cheia de ideias. Esse quilombo fica entre as cidades de Salvador e Simões Filho.
Stela telefonou para o avô, que mora no Rio de Janeiro, e contou o que aprendeu com as crianças do quilombo. “Vejo a consciência política dela no dia a dia e, às vezes, fico surpresa como ela consegue juntar os argumentos históricos que vêm da escola com o que está acontecendo agora”, diz Luiza. Essa mãe buscou para a filha o que não teve na infância.
Sempre sonhei com uma escola onde fosse possível viver a minha ancestralidade. Hoje, como mulher negra e pesquisadora das questões raciais no Brasil, quis dar esse presente a ela”, conta Luiza Meireles, mãe de Stela.
A educação antirracista também fez a jornalista e pesquisadora Carla Aragão escolher a escola de Maria Luna. O antirracismo, ela explica, é o compromisso de descolonizar o olhar. “Ver o mundo, a vida e as pessoas de outra forma e atuar pela valorização de outras maneiras de existir. Não ser racista é pouco. Todos devemos ser antirracistas”.
Carla conta que, desde pequena, a filha compreende que as crianças são diversas e que têm o direito de dizer o que pensam. “Isso, ela sempre fez do jeitinho dela. Lulu tem um olhar muito sensível para a justiça social e a diversidade”. Quando moraram em Barcelona, na Espanha, Maria Luna estudou em uma escola que todo ano fazia uma conferência para que as crianças avaliassem o que estava funcionando e o que precisava mudar.
Nessas eleições, mãe e filha vão votar juntas, como sempre fazem. Para Carla, a consciência política de Maria Luna está no dia a dia, em tudo o que faz, observa, comenta e negocia. Sobre o desejo da filha de ser jornalista e também presidenta do Brasil, a mãe sorri. “Ela já quis ser auxiliar de classe para cuidar de crianças pequenas, já quis ser bombeira, médica e cientista para desenvolver um remédio que fizesse as pessoas viverem para sempre e para descobrir a cura do coronavírus. Ah, e já pensou em ser uma artista famosa e, com o dinheiro dela, construir um prédio imenso para abrigar as pessoas que não têm onde morar”.
As famílias da Maria Felipa também participam das atividades na escola. A mãe de Leonardo, a bióloga Deboraci Prates, preparou uma aula surpresa para a turma do 1º ano: dissecar uma flor de graxa. Por esse método, é possível estudar a anatomia dos seres, o que, no caso da aula, era analisar as diferentes partes da flor, separando cada uma delas.
Deboraci escolheu a graxa por causa do seu nome científico, Hibiscus sp, que significa Ísis, como a deusa egípcia. A ideia da aula veio do dia em que a professora Raquel estava lendo com as crianças “História Pretinha das Coisas – as Descobertas de Ori”, livro infantil escrito pela fundadora da Maria Felipa, Bárbara Carine. Ori é uma menina de seis anos que ama matemática e tem duas mães, uma brasileira e a outra, queniana. As duas são mulheres negras e cientistas. Mamãe Enedina é engenheira civil e mamãe Wangari é bióloga.
No livro, Bárbara conta como o continente africano é pioneiro nos campos científico e tecnológico. Pioneiro é quem começa as coisas. Nas descobertas de Ori, a autora apresenta para as crianças o que faltou em sua própria vivência escolar: durante a graduação, o mestrado e o doutorado, ela não teve uma professora negra. Mas o Brasil e a África têm muitas cientistas e pesquisadoras, e o livro mostra isso. Uma curiosidade: Ori é uma palavra iorubana que significa “cabeça” e, nessa história, representa o pensamento.
Quando estava ouvindo a história de Ori, Leonardo contou que sua mãe também era bióloga. Pró Raquel então entrou em contato com Deboraci e combinaram a surpresa. Nem mesmo o filho sabia. “Eu preparei a aula com muito carinho e as crianças ficaram felizes, participativas e experimentaram a proposta usando materiais de laboratório, como placas de Petri, tubos de ensaio e pinças descartáveis”. Deboraci diz que foi especial ter sido referência para as crianças. “Elas viram que ser cientista também compete às pessoas negras, sobretudo, às mulheres negras”.
A mãe conta que Leonardo tem se interessado cada vez mais por política. O menino faz muitas perguntas, como, por exemplo, por que tem pessoas que moram na rua? Antes de responder, a mãe costuma devolver as perguntas, para saber o que o filho pensa. Para Deboraci, pensar políticas públicas junto com crianças é uma grande oportunidade de construir projetos para toda a sociedade.
Vejo as crianças como uma fonte forte e transparente de expressão sobre tudo o que está ao redor. Elas são muito observadoras e trazem prontamente suas reais necessidades”.